segunda-feira, 30 de agosto de 2010

"Minha profissão é suja e vulgar/ Quero um pagamento para me deixar/ E junto com você estrangular meu riso/ Dê-me seu amor que dele não preciso..."
(Zé Ramalho - Garoto de Alguel)


Duas mulheres e um Civic


Um Honda Civic preto. Janelas abertas, o farol aceso. Canta a motorista enquanto a passageira se olha no espelho e retoca a maquiagem. Saem da av. Juscelino Kubitschek e entram na Av. Brigadeiro Faria Lima. À noite os carros conseguem andar por esse trecho, já pela amanhã, acredite, é um verdadeiro inferno. Carros buzinam, pessoas se xingam, outros nem sabem o que está acontecendo e muitos outros trabalham.

Uma noite quente, daquelas que fazem o ser humano ter vontades; vontade de beber, de amar, de trepar, fuder, sorrir, sei lá o que mais. É mais uma daquelas noites que é impossível ficar em casa sozinho. Uma cerveja com os amigos num bar qualquer é o mínimo que pode ser feito num dia desses.

O semáforo fecha, as duas se olham e sorriem. Mas não era um sorriso qualquer, desses que se dá a um amigo quando se está feliz. Era um sorriso malicioso, uma mistura de desejo, ambição e sexo. Elas não se falam, apenas se olham, admiram-se.

Essa é talvez a maior qualidade e o maior defeito das mulheres; o olhar. Uma mulher que “sabe” olhar é capaz de fazer o que quiser, na hora que quiser e como quiser com qualquer homem. No entanto, quando isso não acontece meu amigo, ela se torna vulnerável, se torna fácil, maleável. Certamente que os dois tipos atraem homens da mesma maneira. O que muda são as conseqüência. Mulheres sempre atraem os homens! O que não acontece é o contrário, homens nem sempre atraem as mulheres. Não importa o quanto feia elas sejam, um homem no “cio” come qualquer coisa, só não conta pros amigos.

O farol abre, o Civic arranca. Primeira, segunda, terceira marcha, a velocidade se estabiliza, a rádio toca um rock´n roll anos 80, estilo Rolling Stones. As duas cantam, e sentadas dançam. A passageira balança o pescoço, joga o cabelo, faz gestos e movimenta seus belos lábios carnudos. O vento toca sua pele com um prazer que me faz sentir inveja. Movimenta seus cabelos e deixa feridas que qualquer homem lamberia até cicatrizar.

O destino está próximo, algumas quadras e logo chegariam. Estavam adiantadas com relação ao horário marcado. Olharam-se, não disseram sequer uma palavra, viraram a direita numa rua mais calma e estacionaram com o objetivo de fazer a hora passar. A motorista desceu do carro, olhou-se pelo reflexo do vidro de trás, ajeitou os cabelos e disse a passageira:

- Me dê um cigarro!

O pedido rapidamente foi atendido. Logo desceu a passageira, deu a volta, encostou-se no carro ao lado da motorista, pegou o cigarro, acendeu, soltou a fumaça e disse:

- Você está realmente linda!

E assim, mais um olhar. Ah o que era aquilo caro leitor! Simplesmente alucinante. A motorista usava um vestido preto, longo, de alça, levemente decotado e com um belíssimo corte na coxa direita. Uma sandália de salto também preta, trançada, de muito bom gosto. De fato, ela estava linda. Aliás, estava não, ela era linda. Dona de uma juventude completamente alucinógena. Aparentava no máximo dezoito anos, o que se deduzia somente pelo fato de estar dirigindo, pois caso não estivesse diria que tinha quase dezessete. O vestido formava um verdadeiro plano de fundo com a função de destacar seus cabelos dourados e ligeiramente cacheados. Era uma ninfa companheiro. Daquelas capazes de deixar Baco sem vontade do vinho, de fazer Zeus abandonar o trono, de Romeu não amar Julieta. Sim, sem exageros, era tudo isso.

- Obrigado, respondeu a motorista. Após, deu uma leve piscada com o olho esquerdo e mais um trago no cigarro.

Cigarro é uma coisa interessante, mulheres bonitas ficam super charmosas e sensuais fumando, já as outras, ficam tão nojentas quanto um velho tarado. Uma mulher fumando seduz, faz o homem apreciar seus lábios, admirar seu corpo enquanto a fumaça sai. É fatal! Cada tragada um pensamento mais perverso, mais sarcástico, mais ilusório. É impressionante a capacidade que os homens têm de se imaginar com uma mulher. Em meio segundo ela já está pelada, em um segundo chupando seu pau, em um segundo e meio ele já a está comendo e em dois segundos ele goza. Para aqueles que têm uma ejaculação mais demorada, em dois segundos e meio ela já está dando o cu, em três segundos ele goza. Todos iguais. Por isso que eu admiro as mulheres, complicadas, confusas, mas belas acima de tudo. Afinal de contas, como dizia o “poetinha”; mulheres não foram feitas para serem entendidas, apenas para serem amadas. Aliás, Deus me deu um único dom, o de não entender as mulheres. Ah, como isso é bom! Imagina o quanto chato seria entender que elas jamais saberão estacionar, que jamais irão ao toalete sozinhas! Péssimo! Pior é pensar no velho tarado.

- Ainda temos um bom tempo, me dê mais um cigarro e aumenta o som.

Era nítida a submissão passiva da passageira. Bastava à intenção para ela atender as vontades da sua companheira. Mas não era nada forçado, era até bonito de se ver. Eu pelo menos gostava. Pareciam irmãs, quando a mais velha sempre manda na mais nova. Só que ai havia de fato um problema: elas eram irmãs.

Nasceram numa pequena cidade do interior de São Paulo. Família, pobre e desestruturada. Pai, nunca houve. Aliás, quem precisa de um pai? Uma mãe de verdade vale por três pais. Mas infelizmente a mãe também não era de verdade. A beleza das duas, por ironia do destino, era pura genética materna. A mãe morreu aos quarenta e cinco anos com um corpo de vinte e dois, uma pele de quinze e um juízo de doze. Viciada em cocaína desde os quinze anos viveu a vida baseada em exageros. Baladas, bebidas, cigarros, drogas e muito sexo. Era tanto sexo que na cidade não se conhecia um homem que não havia lhe comido. Acredito até que não havia um homem que não havia lhe comido junto com outro homem. Alguns pagavam, outros não. Bastava lhe fornecer uma carreira de pó que ela abria as pernas, e que pernas! Foram tantos que era impossível saber quais eram os pais das meninas.

Era apenas um ano e meio de diferença entre as duas. Cresceram numa casa que parecia mais um bordel do que um lar. Eram tantos homens diferentes que as meninas se quer conseguiam se lembrar de todos. Por causa disso cresceram rapidamente e independentemente dos cuidados da mãe. A mais velha sempre cuidando da mais nova com o maior carinho e apego do mundo. Iam para escola juntas, voltavam juntas, brigavam juntas e tudo mais. Quando tinham aproximadamente quinze anos a mãe morreu. Uma overdose de cocaína misturada com muito uísque, sexo e cigarros. A certidão de óbito era tão chocante que um vizinho impediu que as meninas lessem. Parada cardíaca, infarto do miocárdio, deformações vaginais e anais que mais pareciam sinal de estupro do que sexo consensual, fora outras lesões corporais.

Agora, de fato, órfãs. Tudo parecia acabado, ao olhar dos vizinhos, para aquelas crianças. Mas, para quem cresceu órfã com mãe em casa, viver era fácil. Pena que o ser humano, principalmente o homem, não se abala muito com a desgraça alheia.

Dois dias depois do falecimento da mãe, chegou à porta da casa um homem. Engravatado, bem vestido, terno dois botões, corte italiano, sapatos brilhantes, sorriso enganador e cheio de promessas. Duas horas depois as meninas já estavam de malas prontas e indo para o Rio de Janeiro. A promessa: casa, comida, roupa lavada e trabalho.

Ao chegar no Rio, o homem começou as negociações. Casa, comida e roupa lavada sem trabalho durou apenas três semanas. Logo este já estava arrumado. As duas, de uma vez só, foram vendidas para um grupo de rapazes por uma noite inteira.

Juntas, sofreram. Sem dizer não, sem deixar sequer uma lágrima cair. Desculpe-me leitor, mas narrar os fatos daquela noite é praticamente cometer o mesmo crime. Fizeram tudo, absolutamente tudo o que a imaginação fértil e regada a muito álcool daqueles rapazes poderia pensar.

Naquela noite as duas perderam o contato com os próprios corpos e viram, uma de cada vez, a imagem da mãe ao se olharem no espelho. Era impossível, naquele instante, saber o que aquilo poderia significar. A mais velha, quando já em casa, sozinha, lembrou e chorou. Lembrar da mãe, principalmente após o ocorrido, não era um sentimento bom. Diversas imagens lhe vinham à mente, e ela, automaticamente, previu o seu futuro semelhante ao da mãe. A outra, somente riu. Não pensou em nada. Riu, como se estivesse desafiando o próprio destino, e ela estava.

Pouco tempo depois as duas já tinham dinheiro para se manterem relativamente bem e sozinhas. Fugiram e voltaram para São Paulo, mas agora para a capital. E começaram a ganhar dinheiro sem nenhum intermédio. Continuaram na mesma profissão. Não era possível contratar apenas uma, somente trabalhavam juntas.

Alguns anos de profissão se passaram. Elas nunca chegaram a conhecer um homem de verdade. Nunca receberam amor, carinho, paixão ou qualquer outro sentimento digno vindo de um homem. Esses sentimentos só existiam de uma pra outra. E era forte, grande e absoluto. Mas não consolidado.

Um dia, após uma noite de trabalho desgastante as duas voltaram pra casa, quietas, sem trocar uma única palavra. Ao chegar em casa, a motorista, cansada, ajoelhou-se e chorou. Mas não era um simples choro, como aqueles que se dá quando sente dor ou quando se está triste. Era diferente. Um choro oriundo da vida, da falta de coragem, de vontade, um choro de lágrimas cortantes, lágrimas que ao cair sangram a face para deixar a invisível e permanente cicatriz da vida.

A irmã, sem saber o que fazer, sentou-se ao seu lado e a abraçou. Abraçou forte, cheia de amor, carinho, e compaixão. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Sempre foi a irmã quem lhe protegia e cuidava. Mas dessa vez a situação estava tão angustiante que a mais velha cedeu, e pela primeira vez na vida se deu conta de que não estava sozinha. Pela primeira vez na vida percebeu que alguém a amava de verdade, que alguém se preocupava com ela.

As duas se abraçavam com tanta força, com tanta vontade e, acima de tudo, com amor. Olharam-se e, como numa cena de cinema, involuntariamente beijaram. Beijaram-se como quem dá seu primeiro beijo. Um beijo longo, demorado, molhado. Aquele beijo que não se sabe ao certo o que se está fazendo, que bate, de repente, um medo tão grande de não estar fazendo direito, mas logo vem a cabeça uma vontade louca de esquecer isso e continuar beijando. E assim o beijo continua, não para, e as mãos não se movem, as pernas tremem. De fora parece que o mundo inteiro está olhando, o pensamento não mais lhe obedece e o mundo se resume a imensa distância entre as duas bocas. Meu amigo Leitor, era de fato o primeiro beijo de duas garotas que já não possuíam mais nada de virgindade no corpo.

As duas beijaram, beijaram com uma vontade que passava dos limites impostos pela própria vontade. Beijaram tanto que suas bocas adormeceram, incharam. Os lábios de uma dormiram nos lábios da outra, e vice-versa. Aquilo sim era um beijo de verdade, daqueles que fazem a rua inteira parar só para olhar, daqueles capazes de arrancar um sorriso até daquele que não ama.

As bocas, apesar de juntas, já não se mexiam mais, e sem perceber, apaixonadamente, as duas se tocaram. Trocaram carícias, descobriram prazeres em pontos já tanto explorados por mãos sujas, que até elas poderiam jurar que jamais sentiriam. Assim, da sua maneira, apaixonadamente; coabitaram-se. Estava, portanto, consolidado.

O amor que amanheceu no quarto das duas naquela manhã era magno, puro e acima de tudo verdadeiro. Aquele sentimento era tão grande que seria impossível crescer. Era pleno. O sorriso no rosto das duas era tão belo que parecia que o passado estava apagado. Enfim elas tiveram a sua primeira vez, e foi muito semelhante a que toda menina de quinze anos sonha em ter.

No rádio tocava outra música, mais lenta, acompanhando a calma pós cigarro. Voltaram ao carro e partiram para o trabalho. Mais uma noite, mais uma vez. Entretanto, esta seria diferente. seria tão cheia de particularidades que só saberiam tempos depois.


Raoni Silva Moura